Gourdjieff e novo balanço

Lisboa, Paris, 25.11.1974, Segunda- feira

No Porto, por duas horas à espera do vôo a Paris, aguardamos até as cinco horas da tarde. Mas saímos de ônibus da Companhia até Lisboa. Problema técnico, não havia como ficar, uma vez que de lá, pela manhã, tomaríamos outro avião.

Estou no Hotel Diplomático, na rua Castilho e sem desfazer a mala, apenas lavei o rosto e de táxi segui para as Portas de Santo Antão.

Havia almoçado no Varanda com a família Guimarães, e depois, pelo longo calçadão da praia, atingimos o navio encalhado.

Lisboa à noite exibe a Avenida da Liberdade de modo que a sentimos à maneira de Eça e Ramalho Artigão, porém a idéia de tomar o roteiro de Fernando Pessoa e caminhar pelo Chiado até o Mirante da Glória, seria opção. Debruçado, vejo o silêncio da vida.

Estou só subindo a Garrett, por todo o trajeto uma ou outra alma.

Lera há anos todo o rumo do poeta pela solidão da noite e buscara meia dúzia de bares onde sufocava o sofrimento em Lisboa revisitada.

Lembrei-me de momentos tão distantes, pelos meses finais de 1944, acompanhado por companheiros ingleses desaparecidos no pós-guerra.

Voltei ao Hotel em horas que não aferi e, depois as soube por Ana Elisa, então preocupada, sendo que alguns recados anotei-os para Paris.

Sentamo-nos no hall e a primeira frase minha só revelava certo pessimismo quanto ao destino da Ordem.

Hannibal, que faremos? “Prossigamos, respondeu-me.”

Disse-lhe o que fizera sobre Gurdjieff. Eis o seu espírito, e da pasta que trouxera do quarto, tiro o meu desencanto com as próprias raízes de nosso programa, digamos, esotérico.

Minha resposta à sua perplexidade dei-a em frases de sentido fatalista. Tenho-as quase de cor: “os magos comparam a sistematização do conhecimento oculto defensivamente, quando, em verdade, ela, a sistematização, é sempre precedida de alegorias orientais”.

Sabemos, caro Hannibal, de modo elementar, que se tratando de manifestações de psicologia radical, toda a abordagem deve começar pelo indivíduo. Em princípio, a crítica ao racionalista, ao cartasiano, resultado de sua mecanicidade, agitando-se em meio aos embates mesquinhos da vida cotidiana.

O animal, chamado racional, carece de orientação, de forma que se atira à estrada perigosa e cheia de surpresas. O cocheiro gurdjefiano está, afinal, à mercê do acaso.

Hannibal guardou o escrito, pequeno trabalho por mim elaborado durante ano e meio, dizendo-me com tranqüilidade que seria ele o ponto de partida para o nosso encontro amanhã em Paris.

Para o dia seguinte, declaro, sob as penas da lei, que os magos comparam o mistério da vida a carruagem, dirigida por cavalo e cocheiro. (A primeira, puro instinto, o segundo, emocional). O animal é rebelde, imprudente, porque lhe falta domínio, estando à mercê do acaso.

O homem é, pois, fruto de circunstâncias. Afinal, o amo é também, pobre diabo, enganado pela incerteza.

Em síntese, tudo é fruto de circunstâncias, que nada sabem de variáveis escondidas.

Published in: on julho 11, 2009 at 3:08 pm  Deixe um comentário